Quando dei ésta bagatella aos Srs. Editores do jornal das bellas-artespara encherem algum vão que lhes sobrasse n'aquella tam linda e tamelegante publicação, escrevi, a um canto do proprio rascunho originalque não tive paciencia de copear, as seguintes palavras:
«Este romance é uma verdadeira reconstrucção de um monumento antigo.Algumas coplas são textualmente conservadas da tradição popular, e secantam no meio da historia rezada, ainda hoje repetida por velhas ebarbeiros do logar. O conde D. Pedro e os chronistas velhos tambemfabulam cada um a seu modo. O auctor, ou, mais exactamente, orecopilador, seguiu muito pontualmente a narrativa oral do povo, esobretudo quiz ser fiel ao stylo, modos, e tom de cantar e contard'elle; sem o quê, é sua íntima persuasão que se não póde restituir aperdida nacionalidade á nossa litteratura.»
O postscriptum, servindo de nota ou commento, sahiu impresso no primeironúmero do referido jornal com os dois primeiros cantares do romance, efoi ampliado com algumas observações por extremo lisongeiras dos Srs.Editores, a quem tomára eu auxiliar como elles merecem por sua gentilimprêza, que é a mais bella e das mais uteis que se teem commettido emPortugal.
Devo ao seu favor, não so o terem adornado a minha miragaia com as suasgraciosas gravuras em madeira que todos teem admirado, mas o permittiremque fizesse com ellas ésta pequena edição em separado com que querobrindar alguns amigos apaixonados, como eu, de nossas antigualhaspopulares.
É uma folha avulsa do meu romanceiro geral cujo primeiro volume ja estáem podêr do público; e lá será reposta em tempo e logar conveniente.
Foi das primeiras coisas d'este genero em que trabalhei; e é a maisantiga reminiscencia de poesia popular que me ficou da infancia, porqueeu abri os olhos á primeira luz da razão nos proprios sitios em que sepassam as principaes scenas d'este romance. Dos cinco aos dez annos deedade vivi com meus paes n'uma pequena quinta, chamada o «Castello »,que tinhamos áquem Doiro, e que se dizia tirar esse nome da vizinhançadas ruinas do antigo castello mourisco que alli jazem perto. Com osolhos tapados eu iria ainda hoje achar todos esses sitios marcados pelatradição popular. Muita vez brinquei na fonte do rei Ramiro,--cuja águaé deliciosa com effeito; e tenho idêa de me ter custado caro, outra vez,o imitar, com uma gaita da feira de San'Miguel, os toques da bozina deS. M. Leoneza, impoleirado eu, como elle, n'um resto de muralha velha docastello d'elrei Alboazar: o que meu pae desapprovou com tamsignificante energia, que ainda hoje me lembra tambem.
Assim ólho para ésta pobre Miragaia como para um brinco meu de criançaque me apparecesse agora; e quero-lhe--que mal ha n'isso?--quero-lhecomo a tal. Não a julguem tambem por mais, que o não vale.
Lisboa 24 de Janeiro 1844.